- Nº 2165 (2015/05/28)
Reflexões de Abril

- A reforma agrária<br>em quatro registos literários

Argumentos

 Nunca vi um alentejano cantar sozinho, escrevia deslumbrado esse poeta dos racionais afectos e da reinvenção metafórica que foi José Gomes Ferreira. Ou o Raul de Carvalho, falando-nos da sua Vila de Alvito, onde foi criado e dos senhores que a oprimiam; dos medos e sobressaltos do Alentejo profundo, dorido e resistente que o Manuel da Fonseca inscreveu em Cerromaior, Aldeia Nova e nesse incontornável romance que é Seara de Vento. Ou a canção patoleia que Urbano Tavares Rodrigues escreveu para a voz de Adriano Correia de Oliveira: Ó Alentejo dos pobres/Reino da desolação/ Não sirvas quem te despreza/É tua a tua nação. Até esse romance modelar da nossa revolução, inaugural de uma obra maior, cuja guindaria o seu autor ao Nobel da literatura: Levantado do Chão, de José Saramago. «Isto é um livro sobre o Alentejo», afirmou Saramago. Livro sobre a vida, a luta e a morte; sobre a aprendizagem de uma revolução que se fazia, de modo transformador e exemplar, nos campos sofridos desse espaço de «suor e pão». Um livro que quis aproximar-se da vida, do chão de esperança de onde os homens e as mulheres que fizeram «a mais bela das conquistas de Abril», um dia se quiseram erguer. O livro em que se expressa, em plenitude, o estilo identitário do autor de Memorial do Convento. A minha 1.ª edição desse magnífico romance de Saramago contém, para além do autógrafo do autor e de Vasco Gonçalves, dedicatória à família Basuga e à memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, ambos assassinados. A estes, e a Catarina Eufémia, se juntaram António Maria Casquinha e José Geraldo «Caravela». Todos eles tombando no seu chão alentejano, assassinados pelos senhores do medo, do terror, da ignomínia – da negação da vida. Assassinados pelo crime de quererem pertencer a uma terra que fosse de todos, ampla e inteira, um chão onde o fruto germinasse, o pão crescesse e a vida, a dignidade de estar vivo e ser humano, naturalmente se cumprisse. Assim não quiseram os senhores do poder, assim não deixaram os esbirros, os serventuários, os servidores de seus amos. 

O poeta Filipe Chinita fala-nos, num épico sensível e certeiro, num texto que percorre a gesta desses momentos altos de Abril: «Gente Povo Todo o Dia», diz a aventura maior da nossa modernidade cívica e política que foi a Reforma Agrária; em «Cantata Pranto e Louvor», texto, igualmente, de Chinita, do qual Manuel Gusmão é co-autor, é um réquiem pelos que tombaram – emotivo, pungente de indignação face ao crime que narra –, por esse tempo da alegria, fraterno e inteiro. Um longo poema que é o libreto – como o era já Os Dias Levantados, que Manuel Gusmão escreveu para a música de António Pinho Vargas – possível para uma ópera, ou para um cante transfigurado pelas vozes dolentes e expressivas dos cantadores alentejanos. Neste épico se erguem como protagonistas, agentes da acção e do trágico, as vozes de Casquinha e Caravela, do Narrador, esse elemento que sublinha a história dos dias da vergonha, nos descreve passo a passo a barbárie, fazendo-o com comedida economia, escrita no osso, por onde a técnica de distanciação brechtiana a espaços se introduz, e o Coro, esse elemento colectivo que transporta o poema para a voz do arauto que denuncia, que questiona, que nos questiona e se interroga perplexo face à infâmia – sendo, a um tempo, Coro de teatro grego, ora o «nós» colectivo tão caro à estética neo-realista. E é esta simbiose que estrutura o poema, o amplia de múltiplas ressonâncias e o singulariza.

Esta fala, o cuidado da sintaxe, a forma inovadora de um texto que nele inscreve simbólico e reflexão, retém os excessos e o artifício, percorre o histórico no seu húmus, nos seus refluxos mais pungentes, na sua extensa e assumida intertextualidade, com a revolta contida mas premente: com as palavras modelares, significantes na puridade do substantivo rasgo que as envolve. Os autores sabem que o grito é passageiro, que a revolta maior, a que perdura, vem da razão, do esconjuro, do perene rumor que a edifica. É a serenidade deste texto, desta Cantata de evocação sentida, que mais demoradamente nos toca e absorve; é a injustiça nele implícita que nos indigna e leva à rejeição racional do crime que denuncia e das motivações políticas e sociais que estiveram na sua génese: justiça é o clamor que sobe/da terra onde caímos/e fica a vibrar nos corpos/que sobre ela se abateram/a mandado dos senhores/à falsa fé e sem remédio.

Um dia virá, mais cedo que tarde, em que será de novo possível «erguer a voz e cantar». Escutemos a última fala de Casquinha neste Cantata Pranto e Louvor, à qual os autores juntaram um famoso verso de Paul Vaillant-Couturier: já não mais serei eu,/pais e amigos meus/já a mim me roubaram/a vida inteira/que era meu direito viver/já não mais me abraçareis/não mais sentirei no abraço/o meu e os vossos corpos/que firmes ocupam espaço/a minha juventude era eu/a crescer espantado/p’ra minha maior alegria/na beleza do mundo/se agora/já não posso morar/na vossa memória/então não me esqueçam/não me deixem sozinho/lembrem-se dos bandidos/lembrem-se que o comunismo/é a juventude do mundo.

Num outro registo, alicerçado no factual desses anos de brasa, perpassado de elementos vastos e históricos sobre o processo da reforma agrária, seu início, lutas e vitórias, o livro Searas Vermelhas de Abril, de Francisco do Ó Pacheco, é um romance/crónica sobre a memória, um pungente, sentido relato – emotivo, certeiro e justo – sobre a conquista da terra por aqueles que sempre a trabalharam, por aqueles que, mais do que ninguém, justamente a merecem, dado que as coisas devem pertencer a quem cuida bem delas, como nos diz uma personagem da peça O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht.

Francisco do Ó Pacheco cria, neste livro, uma estória de afectos, de cumplicidades, de ampla e fraterna solidariedade. Alegrias, lutas, desânimo e vontade, conjugam-se neste épico para descrever o que foram esses dias, fazendo-o de modo escorreito, sem recursos literários escusos. O autor limita a narrativa, de um realismo absorvente, à crónica dessa revolução essencial, desses dias maiores da nossa força, dos tempos em que o 25 de Abril chegou aos campos do Alentejo e tudo ficou diferente.

Temos de ser assim, camaradas. Já criámos mais de mil postos de trabalho permanentes na nossa região. Trabalhámos vários milhares de hectares de terra. (...) A terra não é nossa. A terra é de quem a trabalha e quem a quiser trabalhar terá sempre direito ao seu bocado de terra. Assim termina, deste jeito política e socialmente correcto, o relato que Francisco do Ó Pacheco nos traça da Reforma Agrária.

O Povo, por muito que os arautos do neoliberalismo tentem menosprezar a luta histórica nos campos do Alentejo, o seu profundo significado político, social e económico, guardará a memória desses dias, esse tempo pleno e digno, para cantar nas vendas, nas tascas, na roda das fogueiras, nas searas de trigo a amadurecer ao sol. Estes livros são desse Povo, inscrevem a sua história, a sua luta. Para que se não esqueça.

Levantado do Chão, de José Saramago – Caminho
Gente Povo Todo Dia, de Filipe Chinita – Página a Página

Cantata, Pranto e Louvor, de Filipe Chinita e Manuel Gusmão – Página a Página

Searas Vermelhas de Abril, de Francisco do Ó Pacheco – Página a Página


Domingos Lobo